**V.7 Testando os ensinamentos**
*Esta passagem afirma que os ensinamentos do Buddha devem ser criticamente avaliados, em vez de apenas serem acreditados de forma cega. Ela vem da obra de Śāntarakṣita (c.680--740), um monge escolástico do Mādhyamika indiano, o qual ajudou a estabelecer, pela primeira vez, o buddhismo no Tibete.*
Monges, aqueles que são aprendizes devem adotar o que eu digo depois de o terem examinado, e não simplesmente por reverência -- tal como alguém testa o ouro aquecendo-o, cortando-o e friccionando-o.
*Tattvasaṅgraha v. 3588, trad. do sânscrito por D.S.*
**V.8 A verdadeira felicidade só pode ser alcançada por meio da realização direta do Dharma**
*Milarepa (Mi la ras pa, c. 1052-c.1135) é um dos yogues e poetas mais famosos do Tibete. Ele foi aluno do grande tradutor Marpa (1012-1097), e uma figura importante na história da ordem Kagyupa do buddhismo tibetano. Ele é mais conhecido por seus poemas espontaneamente compostos, reunidos vários séculos após a sua morte no Mila Gurbum, as “Cem Mil Canções de Milarepa” [^cf1]. A passagem abaixo, contrapondo a felicidade do verdadeiro yogue tântrico com a infelicidade do falso e pretenso “praticante do Dharma” é uma de suas canções mais famosas. A principal mensagem da canção é que a verdadeira felicidade só pode ser alcançada por meio da realização direta do Dharma.*
Conhecendo sua própria natureza e entendendo as coisas como elas são, o yogue está sempre feliz. Perseguindo ilusões e atormentando-se com a dor, o “praticante do Dharma” está sempre infeliz.
Descansando em um estado de espírito sereno, imaculado em seu lugar natural, imutável [^cf2], o yogue está sempre feliz. Perseguindo suas sensações, vítima de apegos e aversões, o “praticante do Dharma” está sempre infeliz.
Tendo compreendido todas as experiências como sendo o corpo-de-Dharma [^cf3], tendo se desligado de todos os medos, esperanças e dúvidas, o yogue está sempre feliz. Tagarelando disparates, não tendo subjugado as oito preocupações mundanas [^cf4] o “praticante do Dharma” está sempre infeliz.
Tendo entendido tudo como sendo a mente, tomando toda a sua experiência como uma assistente amigável, o yogue está sempre feliz. Desperdiçando sua vida humana em distrações apenas para lamentá-la no momento de sua morte, o “praticante do Dharma” está sempre infeliz.
Com a plena realização internalizada, tendo ocupado o lugar natural das coisas como elas são [^cf5], o yogue está sempre feliz. Sua cabeça cheia de desejos, ansiando e desejando coisas, o “praticante do Dharma” está sempre infeliz.
Ter uma experiência constante de realização por meio da libertação dos conceitos à medida que surgem, o yogue está sempre feliz. Acreditando nas expressões convencionais, não tendo compreendido a natureza da mente, o “praticante do Dharma” está sempre infeliz.
Tendo renunciado a todos os assuntos mundanos, vivendo sem qualquer fixação no resultado, o yogue está sempre feliz. Protegendo sua esposa e parentes ao tomar sobre si o peso do sofrimento, o “praticante do Dharma” está sempre infeliz.
Tendo se afastado do apego, tendo realizado que tudo tem natureza ilusória, o yogue está sempre feliz. Ao entrar no caminho da distração, ligando seu corpo e mente à servidão, o “praticante do Dharma” está sempre infeliz.
Tendo percorrido os caminhos e estágios (do bodhisattva) por montar o cavalo do vigor, o yogue está sempre feliz. Agrilhoado pela preguiça, ancorado no oceano do saṃsāra, o “praticante do Dharma” está sempre infeliz.
Tendo aclarado equívocos por meio da aprendizagem e da ponderação, observando o espetáculo em sua mente [^cf6], o yogue está sempre feliz. Dizendo o Dharma da boca para fora, enquanto age de modo prejudicial, o “praticante do Dharma” está sempre infeliz.
Tendo cortado todos os medos, esperanças e dúvidas, vivendo sem interrupção no estado inato (da mente), o yogue está sempre feliz. Sendo conduzido como um tolo pelo nariz, mantendo as aparências e vivendo em conformidade (com os outros), o “praticante do Dharma” está sempre infeliz.
Virando as costas para todas as coisas do mundo, sempre praticando o Dharma divino, o yogue está sempre feliz.
*“Cem Mil Canções de Milarepa”, pgs.224-25, trad. T.A.*
**V.9 Adversidades como bênçãos disfarçadas que reconduzem uma pessoa ao Dharma**
*Esta passagem é um famoso verso citado em “As Palavras do meu Professor Perfeito”, por Longchenpa (1308-1364), o mais proeminente mestre e autor da ordem Nyingmapa.*
Pressionados pela hostilidade, podemos nos voltar ao Dharma e encontrar o caminho da libertação; obrigado, àqueles que prejudicam!
Atormentados pela miséria, podemos nos voltar ao Dharma e encontrar a benção eterna; obrigado, sofrimento!
Assaltados por demônios, podemos recorrer ao Dharma e encontrar o destemor; obrigado, espíritos malignos!
Odiados por outros, podemos nos voltar ao Dharma e encontrar o verdadeiro bem-estar; obrigado, inimigos!
Aflitos por acidentes, podemos nos voltar ao Dharma e encontrar o caminho imutável; obrigado, calamidades!
Provocados por outras pessoas, podemos nos voltar ao Dharma e encontrar o significado fundamental; obrigado, provocadores!
Para retribuir a sua bondade, eu dedico minha virtude a vocês!
*“As Palavras de meu Professor Perfeito”, pgs.289--90, trad. por T.A.*
[^cf1]: Para uma tradução para o inglês, consulte The Hundred Thousand Songs of Milarepa, trad. Garma C.C. Chang (HSM). Veja pgs.459-61 para a passagem.
[^cf2]: O “assento imutável natural” é a natureza da mente (ver V.70).
[^cf3]: Consulte a introdução acima M.9.
[^cf4]: As oito preocupações mundanas são os quatro pares de ganho e perda, prazer e dor, elogio e crítica, fama e infâmia.
[^cf5]: A expressão “o assento natural das coisas como elas são” refere-se ao estado natural da mente e dos fenômenos na natureza da mente.
[^cf6]: Olhar para tudo o que aparece na mente como um show de magia.