[01 Capítulo 1 - Índice](01%20Capítulo%201%20-%20Índice.md)
# **O despertar e depois disso**
## **Vi.15 Atingir as absorções meditativas, ver vidas passadas e o funcionamento do karma, e atingir a libertação**
*Nesta passagem. o Buddha se lembra de seu despertar/iluminação. Após seu período ascético, e próximo de abandonar, ele se perguntou se haveria outro meio que fosse efetivo para o despertar. Nesse ponto, ele se lembrou de um estado meditativo que havia entrado num momento de sua juventude: a primeira das quatro absorções meditativas (jhānas: ver Th.140), que era feliz e alegre, mas que nada tinha de prazeres sensoriais ou estados negativos da mente. Ele, então, decidiu revistar esse estado como um meio para o despertar. Uma vez que é claro a partir de outras passagens de que isso teria sido atingido por uma prática como da vigilância por meio da respiração, podemos ver que seu caminho agora se tornara um de consciência cuidadosa em relação ao corpo, ao invés do atingimento dos estados informais que transcendiam completamente o corpo, ou do ascetismo extremo que implicava a maestria do corpo pela força e pela vontade.*
*Ele, então, recuperou a saúde física terminado o jejum, de modo a poder prosseguir atingindo as quatro absorções meditativas, e então a partir da grande quietude e sensibilidade da quarta absorção, ele se lembrou de suas incontáveis vidas passadas, viu como outros seres assim renasciam de acordo com a qualidade de seu karma, suas ações e, então, o mais crucial, atingiu o insight direto em relação à natureza dolorosa da existência condicionada, o que originava tais estados e suas dores mentais e físicas, como terminavam, e o caminho para isso: tais quatro Verdades dos Nobres (frequentemente chamadas de “Nobres Verdades”) posteriormente se tornaram o tema de seu primeiro ensinamento. Insight em relação à terceira delas implicava a realização do nirvāṇa, e portanto o fim das inclinações intoxicantes que são uma barreira para isso. Ele viu, então, que havia agora despertado. Ele era um Buddha.*
Aggivesana, eu considerei: “Lembro-me de que quando meu pai, o sakya, estava ocupado, enquanto eu estava sentado na sombra fresca de um jambeiro, afastado dos prazeres sensoriais, afastado de estados prejudiciais, entrei e permaneci na primeira absorção meditativa, que é constituída de alegria e prazer fácil, associada à aplicação mental e ao exame, e nascida da reclusão. Poderia ser este o caminho para o despertar?” Aggivessana, então, seguindo essa memória veio a realização: “Este é realmente o caminho para o despertar”.
Aggivessana, eu considerei: “Por que eu tenho medo desse prazer fácil que não tem nada a ver com prazeres sensoriais e estados prejudiciais?” Aggivessana, eu considerei: “Não tenho medo desse prazer fácil que nada tem a ver com prazeres sensoriais e estados prejudiciais”.
Aggivessana, eu considerei: “Não é fácil atingir esse prazer fácil com um corpo tão excessivamente emagrecido. Suponha que eu coma um pouco de comida sólida: um pouco de arroz cozido e mingau?” E comi comida sólida: arroz cozido e mingau.
Aggivessana, agora naquela época, cinco monges estavam cuidando de mim, [^cf1] e pensavam: “Se nosso renunciante Gotama alcançar algum estado superior, ele nos informará”. Mas, Aggivessana, quando comi o arroz cozido e o mingau, os cinco monges ficaram desgostosos e me deixaram, pensando: “O renunciante Gotama vive agora luxuosamente; ele desistiu de sua luta e voltou ao luxo”.
Aggivessana, quando eu tinha comido alimento sólido e recuperado minha força, então, afastado de prazeres sensoriais, afastado de estados prejudiciais, entrei e permaneci na primeira absorção meditativa, que é constituída de alegria e prazer fácil, associada à aplicação mental e ao exame. Mas tal sensação agradável que surgiu em mim não invadiu minha mente e permaneceu.
Com o aquietamento da aplicação mental e do exame, entrei e permaneci na segunda absorção meditativa, que é constituída de alegria e de prazer fácil, nascida de um estado composto, concentrado, desprovida de aplicação mental e de exame, trazendo clareza interior, sendo um estado de unifocamento da mente. Mas tal sensação agradável que surgiu em mim não invadiu minha mente e permaneceu.
Com o não apego à alegria, permaneci com equanimidade, sendo vigilante e com clara compreensão, experimentei a felicidade com o corpo; e entrei e permaneci na terceira absorção meditativa da qual os nobres declaram: “Ele é dotado de equanimidade, é vigilante, uma pessoa que vive na felicidade”. Mas tal sensação agradável que surgiu em mim não invadiu minha mente e permaneceu.
Tendo desistido anteriormente do prazer e da dor, com o desaparecimento da felicidade e da infelicidade, entrei e permaneci na quarta absorção meditativa, que é sem qualquer (sensação) agradável ou dolorosa, e é purificada pela equanimidade e pela vigilância. Mas tal sensação agradável que surgiu em mim não invadiu minha mente e permaneceu.
Quando minha mente estava assim estável, purificada, brilhante, sem defeito, as impurezas removidas, maleáveis, manejáveis, firmes e chegadas à imperturbabilidade, eu a direcionei ao conhecimento da recordação de vidas passadas. Eu recordei minhas múltiplas vidas passadas, isto é, um nascimento, dois nascimentos, três nascimentos, quatro nascimentos, cinco nascimentos, dez nascimentos, vinte nascimentos, trinta nascimentos, quarenta nascimentos, cinquenta nascimentos, cem nascimentos, mil nascimentos, cem mil nascimentos, muitas eras de contração do mundo, muitas eras de expansão do mundo, muitos eras de contração e expansão do mundo: “Lá fui assim chamado, de tal clã, com tal aparência, tal era meu alimento, tal minha experiência de prazer e dor, tal minha duração de vida; e saindo de lá, renasci em outro lugar; e lá também fui assim chamado, de tal clã, com tal aparência, tal era meu alimento, tal minha experiência de prazer e dor, tal minha duração de vida; e saindo de lá, renasci aqui”.
Assim, com seus aspectos e detalhes, eu me recordei de (muitas) de minhas múltiplas vidas passadas. Aggivessana, esse foi o primeiro conhecimento verdadeiro alcançado por mim na primeira vigília da noite. A ignorância foi banida e o conhecimento verdadeiro surgiu, a escuridão foi banida e a luz surgiu, como acontece em quem vive de modo diligente, ardente e resoluto. Mas tal sensação agradável que surgiu em mim não invadiu minha mente e permaneceu.
Quando minha mente estava assim estável, purificada, brilhante, sem defeito, as impurezas removidas, maleáveis, manejáveis, firmes e chegadas à imperturbabilidade, eu a direcionei ao conhecimento da morte e do renascimento dos seres. Com o olho divino, que é purificado e supera o humano, eu vi seres morrendo e renascendo, de um status baixo ou alto, belos e feios, afortunados e infelizes, e entendi como os seres prosseguem de acordo com suas ações (*karma*) assim: “Esses seres que se comportaram erroneamente pelo corpo, pela fala e pela mente, que insultaram os nobres, mantiveram uma perspectiva errada, e empreenderam ações baseadas na perspectiva errada, com a dissolução do corpo, após a morte, renasceram em um estado de miséria, em um destino ruim, no mundo inferior, até no inferno; mas esses seres que se comportaram bem pelo corpo, pela fala e pela mente, que não desprezaram os nobres, que mantiveram uma perspectiva correta, e empreenderam ações baseadas na perspectiva correta, com a dissolução do corpo, após a morte, renasceram em um bom destino, em um mundo celestial”.
Assim, com o olho divino, que é purificado e supera o humano, eu vi seres morrendo e renascendo, de um status baixo ou alto, belos e feios, afortunados e infelizes, e entendi como os seres se comportam de acordo com suas ações. Aggivessana, esse foi o segundo conhecimento verdadeiro alcançado por mim na vigília do meio da noite. A ignorância foi banida e o conhecimento verdadeiro surgiu, a escuridão foi banida e a luz surgiu, como acontece em alguém que vive de modo diligente, ardente e resoluto. Mas tal sensação agradável que surgiu em mim não invadiu minha mente e permaneceu.
Quando minha mente estava assim estável, purificada, brilhante, sem defeito, as impurezas removidas, maleáveis, manejáveis, firmes e chegadas à imperturbabilidade, eu a direcionei ao conhecimento da destruição das inclinações intoxicantes. [^cf2] Eu soube diretamente como isto realmente é: “Isto é o doloroso”; “isto é a origem do doloroso”; “isto é a cessação do doloroso”; “isto é o caminho que conduz à cessação do doloroso”.
Eu soube diretamente como isto realmente é: “Estas são as inclinações intoxicantes”; “esta é a origem das inclinações intoxicantes”; “esta é a cessação das inclinações intoxicantes”; “este é o caminho que conduz à cessação das inclinações intoxicantes”.
Quando eu soube e vi assim, minha mente foi libertada da inclinação intoxicante em relação ao desejo sensorial, da inclinação intoxicante em relação a um modo de ser, e da inclinação intoxicante em relação à ignorância.
Quando foi libertado, veio o conhecimento: “Isto está libertado”. Eu soube diretamente: “O nascimento [^cf3] está destruído, a vida santa foi vivida, o que tinha de ser feito foi feito, e não há mais nada a ser feito depois”.
Aggivessana, esse foi o terceiro conhecimento verdadeiro alcançado por mim na última vigília da noite. A ignorância foi banida e o conhecimento verdadeiro surgiu, a escuridão foi banida e a luz surgiu, como acontece em quem vive de modo diligente, ardente e resoluto. Mas tal sensação agradável que surgiu em mim não invadiu minha mente e permaneceu.
[[Mahā-saccaka Sutta]]: [[Majjhima Nikāya]] I.246--249, trad. G.A.S.
## **Vi.16 Alegria ao encontrar o fim do vagar de vida em vida**
*Aqui o Buddha expressa alegria ao identificar e cessar o desejo sedento que o dirigia, como a todos os seres, através de repetidos renascimentos, e as dores mentais e físicas que derivavam daí.*
Por muitos nascimentos vaguei no saṃsāra [^cf4], buscando, mas não encontrando o construtor da casa [^cf5]. Doloroso é o nascimento repetido.
Ó construtor da casa! Você foi visto. Você não mais construirá uma casa. Todos seus caibros foram quebrados. Seu pilar foi despedaçado. A mente está livre das construções volitivas. Obtida é a destruição do desejo sedento.
[[Dhammapada]] 153--154, trad. G.A.S.
## **Vi.17 Atingir o nirvāṇa ao alcançar o despertar/iluminação**
Monges, procurando o que é saudável, buscando o estado supremo de paz sublime, vaguei por etapas pelo país de Magadha até finalmente chegar a Uruvelā, perto de Senānigama. Lá vi um agradável pedaço de terra, um bosque delicioso com um rio de fluxo claro com margens agradáveis e suaves, e perto de uma aldeia para pedir o alimento.
Monges, eu considerei: “Este é um pedaço agradável de terra; este é um bosque delicioso com um rio de fluxo claro, com margens agradáveis e suaves, e perto de uma aldeia para pedir o alimento. Isso servirá para o esforço de um homem de clã com a intenção de se esforçar”. E eu lá me sentei, pensando: “Isso servirá para o esforço”.
Monges, então sendo eu mesmo sujeito ao nascimento, tendo entendido o perigo no que está sujeito ao nascimento, buscando a segurança suprema em relação à escravidão, nirvāṇa, eu atingi a segurança suprema em relação à escravidão, nirvāṇa; sendo eu mesmo sujeito ao envelhecimento, tendo entendido o perigo no que está sujeito ao envelhecimento, buscando a segurança suprema sem envelhecimento em relação à escravidão, nirvāṇa, eu atingi a segurança suprema sem envelhecimento em relação à escravidão, nirvāṇa; sendo eu mesmo sujeito à doença, tendo entendido o perigo no que está sujeito à doença, buscando a segurança suprema que não adoece em relação à escravidão, nirvāṇa, eu atingi a segurança suprema que não adoece em relação à escravidão, nirvāṇa; sendo eu mesmo sujeito à morte, tendo entendido o perigo no que está sujeito à morte, buscando a segurança suprema sem morte em relação à escravidão, nirvāṇa, eu atingi a segurança suprema sem morte em relação à escravidão, nirvāṇa; sendo eu mesmo sujeito à tristeza, tendo entendido o perigo no que está sujeito à tristeza, buscando a segurança suprema sem tristeza em relação à escravidão, nirvāṇa, eu atingi a segurança suprema sem tristeza em relação à escravidão, nirvāṇa; sendo eu mesmo sujeito às impurezas, tendo entendido o perigo no que está sujeito às impurezas, buscando a segurança suprema imaculada em relação à escravidão, nirvāṇa, eu alcancei a segurança suprema imaculada em relação à escravidão, nirvāṇa.
O entendimento e a visão surgiram em mim: “Minha libertação é inabalável. Este é o meu último nascimento. Agora não há mais repetição de ser”.
[[Ariya-pariyesana Sutta]]: [[Majjhima Nikāya]] I.166--167, trad. G.A.S.
## **Vi.18 A redescoberta de um caminho antigo**
^6714e2
*Nesta passagem o Buddha compara sua descoberta do nobre caminho óctuplo, que leva à cessação da massa dolorosa do envelhecimento e morte, etc., como sendo a redescoberta de um caminho para uma cidade antiga perdida. Como outros Buddhas do passado antigo antes dele, ele havia descoberto o caminho para o nirvāṇa, e ensinado aos outros.*
Monges, suponha que um homem vagando por uma floresta veria um caminho antigo, uma estrada antiga percorrida por pessoas no passado. Ele a seguiria e veria uma cidade antiga, uma antiga capital que havia sido habitada por pessoas no passado, com parques, bosques, lagoas e muralhas, um lugar encantador. Então o homem iria informar o rei ou um ministro real sobre isso e diria: “... Senhor, renove essa cidade!” Então o rei ou o ministro real renovaria a cidade, e algum tempo depois essa cidade se tornaria bem sucedida e próspera, bem povoada, cheia de pessoas, alçada ao crescimento e expansão.
Monges, assim também eu vi o caminho antigo, a antiga estrada percorrida pelos Buddhas perfeitamente despertos do passado. O que é esse caminho antigo, essa estrada antiga? É apenas este nobre caminho óctuplo, a saber: perspectiva correta, determinação correta, fala correta, ação correta, meios de vida corretos, esforço certo, vigilância correta, e concentração meditativa correta.
Segui esse caminho e, ao fazê-lo, tenho conhecido diretamente o envelhecimento e a morte, sua origem, sua cessação e o caminho que conduz à sua cessação. ...
Tendo conhecido-os diretamente, expliquei-os aos monges, às monjas, aos seguidores laicos homens e mulheres. Monges, esta vida santa tornou-se bem sucedida e próspera, estendida, popular, generalizada, bem proclamada entre deidades e humanos.
[[Nagara Sutta]]: [[Saṃyutta Nikāya]] II.105--107, trad. G.A.S.
## **Vi.19 Honrando o Dhamma**
*Aqui o Buddha percebe que não há pessoa que ele possa louvar que seja superior a ele em termos de qualidades espirituais, mas que ele poderia louvar o Dhamma para o qual ele havia despertado. A deidade Brahmā Sahampati, um “não-retornante” que havia sido ensinado por um Buddha do passado (Saṃyutta Nikāya V.232--233), aparece a ele e confirma que todos os Buddhas louvam o Dhamma.*
Em certa ocasião, quando o Bem-Aventurado havia recentemente desperto, ele residia em Uruvelā, na margem do rio Nerañjarā, ao pé da árvore banyan dos pastores de cabras. Então, enquanto estava sozinho e em reclusão, esta linha de pensamento surgiu em sua mente: “Alguém sofre se não tiver reverência ou deferência. Agora, em qual renunciante ou brāhmaṇa posso viver na dependência, honrando-o e respeitando-o?”
Então, o Bem-Aventurado considerou: “Seria pela causa de aperfeiçoar o corpo imperfeito da disciplina ética que eu viveria na dependência de outro renunciante ou brāhmaṇa, honrando-o e respeitando-o. No entanto, neste mundo com suas deidades, māras e brāhmas, com seus povos, renunciantes, brāhmaṇas, reis e massas, não vejo outro renunciante ou brāhmaṇa mais consumado na disciplina ética do que eu, com o qual eu poderia viver na dependência, honrá-lo e respeitá-lo.
Seria por uma questão de aperfeiçoar o corpo imperfeito da concentração meditativa... o corpo imperfeito da sabedoria... o corpo imperfeito da libertação... o corpo imperfeito do conhecer e ver da libertação que eu viveria na dependência de outro renunciante ou brāhmaṇa... No entanto... não vejo outro renunciante ou brāhmaṇa mais consumado nessas coisas do que eu...
E se eu vivesse na dependência deste mesmo Dhamma para o qual despertei plenamente, honrando-o e respeitando-o?
Então, tendo conhecido com sua própria mente a mente do Bem-Aventurado, assim como um homem forte poderia estender seu braço dobrado ou dobrar seu braço estendido, Brahmā Sahampati desapareceu do mundo de Brahmā e reapareceu na frente do Bem-Aventurado. Arranjando seu manto superior sobre um ombro, saudou o Bem-Aventurado com as mãos à frente de seu coração e disse-lhe:
“Bem-Aventurado, assim é! Afortunado, assim é! ...
Despertos no passado, aqueles no futuro, e aquele que é o desperto agora, removendo a tristeza de muitos,
Todos viveram, viverão, vivem reverenciando profundamente o verdadeiro Dhamma. Isso, para os Buddhas, é a lei padrão.
Portanto, aquele que deseja seu próprio bem, aspirando à grandeza, deve respeitar profundamente o verdadeiro Dhamma, lembrando-se do ensinamento dos Buddhas”.
[[Gārava Sutta]]: [[Saṃyutta Nikāya]] I.138--140 \<304--306\>,[^cf6] *trad. G.A.S.
[^cf1]: Que mais tarde se tornaram os primeiros discípulos do Buddha, uma vez que tiveram a sorte de ser seu público no seu primeiro discurso.
[^cf2]: Para ser um arahant, desperto/iluminado. Veja Th.128 sobre as inclinações intoxicantes.
[^cf3]: Ou seja, renascimento. E todo o processo futuro de nascimento e de morte de estados impermanentes e condicionados
[^cf4]: O ciclo de nascimento e morte.
[^cf5]: Da existência condicionada pessoal.
[^cf6]: A Pali Text Society tem duas edições do volume I do Saṃyutta-nikāya; os números de páginas da nova edição são mostradas entre \<\> chevrons.